sexta-feira, outubro 03, 2014

TELEVISÃO: A carpintaria da cena

Quando se pensa em criar uma cena de telenovela, é preciso pensar em toda a sua estrutura. Qual o objetivo da cena? Qual o assunto? Quem são os personagens envolvidos e qual a função de cada um deles? É preciso respeitar o perfil de cada um, ou seja, como cada um deles reage ao assunto em questão. O autor precisa ter a capacidade de se colocar no lugar de cada personagem, pensar como se fosse ele.

No caso da cena em questão, o objetivo, além de informar ao espectador sobre o namoro dos dois protagonistas e sua repercussão na vida daquele grupo de pessoas, também é uma cena de apresentação, pois, através dos comentários, podemos perceber como é a personalidade de cada uma das personagens, sem que isso seja dito de maneira didática ou artificial. Tenho muito carinho por essa cena, pois foi uma das primeiras que escrevi em meus primeiros cursos de roteiro e, quem sabe, ela não vá ao ar um dia em uma novela escrita por mim? Por enquanto, publico novamente por aqui, já que ela já foi publicada uma vez no melão. Espero que apreciem.


Elegante chá de senhoras nos anos 50. Por Vitor de Oliveira

O CONTEXTO. A MATRIARCA DOMINADORA E PSEUDO-CONSERVADORA CARMEM LUCCHESI RECEBE SENHORAS RESPEITÁVEIS PARA UM AGRADÁVEL CHÁ DA TARDE EM SUA CASA: SUA IRMÃ, A SUBMISSA LEONOR, D. LYGIA, A AUSTERA DIRETORA DO COLÉGIO DAS FILHAS E LUCIMEI, MILIONÁRIA LIBERAL DE MODOS MODERNOS MUITO MAL VISTA PELA SOCIEDADE. TUDO TRANSCORRE BEM, APESAR DAS INTERVENÇÕES DA SOGRA DE CARMEM, DONA TININHA, UMA VELHA ASSANHADA E “PRAFRENTEX”, QUE SEMPRE DIZ O QUE PENSA.
CENA 32. CASA DE CARMEM. SALA. INTERIOR. DIA. 
CARMEM TOMA CHÁ COM LYGIA, LEONOR, LUCIMEI E DONA TININHA. DAÍSA ENTRA.
DAÍSA — Mais chá?
CARMEM — Não, Daísa. Pode ir.
D.TININHA — Espera, Daísa! Traz mais biscoitinho. 
CARMEM — Já não comeu biscoito demais? 
D.TININHA — Que é isso, Carmem, o que é que as visitas vão pensar? Que você fica regulando comida?
LYGIA — (LEVEMENTE CONSTRANGIDA) Imagina.
LEONOR — (SORRINDO) Vai acabar engordando além da conta.
D.TININHA — Ih, menina, é disso que os homens gostam. Eles adoram ter onde pegar. 
CARMEM — (ENVERGONHADA) Dona Tininha!
LEONOR E LYGIA CONSTRANGIDAS. LUCIMEI SE DIVERTE.
LUCIMEI — Ah, Dona Tininha, a senhora não tá no gibi.
CARMEM — Traz mais biscoito, Daísa. (RESIGNADA). Leonor, e as meninas, por que não vieram?
LEONOR — A Renata tá tendo aula de piano. Quase não sai de casa. A Roberta saiu com o namoradinho.
CARMEM — Ai, minha irmã, não me conformo de você permitir que a Roberta namore esse mecânico.
LEONOR — Que é isso, Carmem? Um namorico inocente. A Roberta só tem dezessete anos. Coisa da idade.
CARMEM — Não sei, não. Já faz um mês que ela tá nesse “namorico inocente” e nada de você conhecer o rapaz. Eu soube que ele estava envolvido naquela confusão da sorveteria.
LUCIMEI — A Camila me contou que o Gustavo é um amor de rapaz. E que ele só queria defender a Roberta.
LYGIA — No colégio, ele vai indo muito bem. É um aluno bastante aplicado. Não posso negar, tira boas notas /
CARMEM — A que família ele pertence?
LEONOR — Como assim?
CARMEM — Ora, ele namora uma Lucchesi. Quatrocentos anos de tradição. E você nem sabe de que família ele é?
LEONOR — Não sei, Carmem, só sei que é gente simples.
CARMEM — Abre o olho, Leonor! Esse mundo tá cheio de aproveitadores. Francamente, eu acho um absurdo a Roberta sair com um rapaz que a gente nem conhece a família. Ah, se fosse filha minha...
LYGIA — Isso é verdade! As minhas eu levo ali no cabresto.
CARMEM — É como eu digo. Filha mulher é um castigo. Eu proponho um jantar entre as famílias.
LUCIMEI — (OLHA PARA O RELÓGIO) Xi, falando em filha, eu tenho que ir. Combinei de sair com a Camila.
CARMEM — Já vai, querida? É cedo.
LUCIMEI — Não, já tô atrasadíssima. A gente vai pegar a matinée. Tá passando um filme ótimo.
LUCIMEI LEVANTA. AS DEMAIS, EXCETO DONA TININHA QUE DEVORA OS BISCOITOS PARECENDO ALHEIA A TUDO, LEVANTAM PARA CUMPRIMENTÁ-LA.
LUCIMEI — Obrigado pelo chá, Carmem. Você, como sempre, recebe muito bem.
CARMEM — Imagina, vê se aparece mais.
LUCIMEI — Boa tarde, meninas!
TODAS — Boa tarde.
CARMEM — Daísa, acompanhe a Dona Lucimei até a porta.
DAÍSA ABRE A PORTA. LUCIMEI SE DESPEDE E SAI.
LYGIA — Que absurdo. Mãe e filha indo ao cinema desacompanhadas no meio da tarde. Como se fossem da mesma idade...
CARMEM — Também o que esperar de uma mãe solteira? Teve a filha não sei com quem. Não é à toa que a menina foi recusada em vários colégios.
LYGIA — Eu aceitei a matrícula por piedade. Coitadinha, a menina não tem culpa da mãe que tem.
D.TININHA — Engraçado, Dona Lygia. Eu pensei que a senhora tivesse aceitado a menina no colégio porque a mãe é milionária.
CARMEM — Dona Tininha! Mais uma dessas eu coloco a senhora lá pra dentro, hein?
DAÍSA DE LONGE RI. LEONOR DÁ UM LEVE SORRISO.
LEONOR — Carmem, não se pode negar que a Lucimei é muito boa pessoa. Ajuda nas obras da paróquia, contribui com a creche do bairro/
CARMEM — Isso é pra expiar os pecados. E aquela filha dela, solta daquele vai jeito acabar perdida igual à mãe.
LEONOR — Que exagero, Carmem.
CARMEM — Exagero nenhum! E você que não cuide da Roberta que ela vai pro mesmo caminho. Está decidido. Vamos fazer um jantar com a família desse rapaz pra saber quem é ele! 
          LEONOR — Mas /
CARMEM — Minha irmã, o que seria da nossa família sem mim?
EM LEONOR, RESIGNADA, E EM CARMEM, DECICIDA, CORTA PARA:

(Cena 32 do cap. 3 de “Só Você”, sinopse desenvolvida por mim e com seis capítulos escritos em parceria com Fellipe Carauta e Carlos Fernando Barros, sob a supervisão de Margareth Boury, que coordenou a oficina onde tudo começou em 2007).